21 março, 2009

3º EPISÓDIO - VEREDICTOS

de Fernando Rezende
Deito e acordo numa angústia que esqueceu a porta de saída. Não vejo além, nada sei de meus dias a não ser o lamentar sozinho nas sombras, de murmurar reações apáticas como sempre fiz, sempre quis que assim fosse. De um jeito que eu não possa mais lutar, mas ora, grande mentira, é verdade pura que nunca tentei desvencilhar-me das constantes investidas desse mundo contra minha pessoa. Desde sempre, desde que meu avô começou a contar-me verdades demais, falar mais do que meu coração poderia um dia agüentar. Mais do que meus ouvidos conseguiriam um dia ouvir sem sangrar, sem desejar que uma tesoura pontuda, guiada por uma mão hábil pusesse um fim para as palavras. Mesmo assim, continuavam. Sem som, o movimento dos lábios, veredictos silenciosos, que se escutava com os olhos, tanto os da alma quanto os do corpo. Nada melhor do que o veneno. Veneno que encontrei no porão e, delicadamente, com um amor sem igual, misturei as poucas colheradas de sopa morna de vegetais que o idoso ainda conseguia ingerir. Nada mais que umas poucas colheradas e já estava com os olhos vítreos, parados e as mãos enrugadas, ali, com a colher pendendo. Fitei-o por horas a fio, até que os juízes chegaram e gritaram, fizeram o diabo com aquilo. Choravam e aos berros me chacoalhavam, diziam coisas desconexas e, ao mesmo tempo, fazia os famosos julgamentos. Nunca mesmo iria mudar. Nunca me acreditaram. O velho, meu avô, aquele que me contava as coisas como elas eram - essas mesmas que eu não queria escutar -ficava ali, parado, colher em punho, um fio de sopa alaranjado escorrendo do canto da boca. Nunca mais falaria, era o que eu pensava. Porém, sempre que eu era depois julgado e maltratado e por vezes sem conta, surrado pelos juízes, em meio ao meu choro entrecortado, eu ouvia o ranger das molas da cadeira de balanço no porão, juntando teias de aranha em seu encosto e então, corria para lá e ele estava inclinado, como sempre, e me olhava, parado. Nunca mais me aconselhou a ser paciente, pelo contrário, mexia a boca, suja de sopa, só para dizer, pelo que eu conseguia ler em seus lábios, maldições e coisas sujas. Pensei certa vez, em atear fogo á cadeira, mas depois ponderei a respeito e cheguei à conclusão que seria pior, mais criminoso do que o vidro entornado na sopa. Aquele eu misturei várias e várias vezes com a colher, e, no entanto, lá estava sempre ele na cadeira, agora se eu a queimasse, ateasse fogo á ultima coisa que o ancião teve na Terra, eu seria criminosamente errado, injusto e por fim, julgado. Mesmo tarde da noite os ruídos não cessam, continuam reverberando no silêncio do cômodo e por todos os outros da casa entulhada e suja. Quando aventuro-me fora dali, vejo a cozinha, eterno pingar de água na pia enferrujada, a mesa com os pratos a feder e recender á podridão. A porta de batidas compassadas, no ritmo do vento, traz a nostalgia de um inverno infindável para todo o lugar. O sofá manchado, ninguém mais pode limpar, tampouco tirar o cão repleto de moscas de cima dele. Ora, era de ímpar injustiça que isso fosse feito, uma vez que o cão apenas queria descansar como fazia agora, todos e todos os dias do ano e da vida. Nada de espantá-lo com golpes de jornal dobrado. Os peixes também residentes da sala, agora nadavam em paz, relativa paz, no negrume da água, salgada pelos olhos que nadavam ali agora, para sempre, observando, bem de perto, os peixes.

Não perca o próximo episódio de 'Veredictos'.
Neste próximo sábado (28) ás 23h40, aqui no BRTV!

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